histórias com isqueiros

A Licença

O isqueiro e as armas

Ao adquirir um isqueiro procura-se segurança mas também que funcione sempre quando necessário, isto é, que se dê a ignição de um elemento combustível (4). O mesmo acontece com as armas.

Isqueiros e armas têm em comum: segurança, fiabilidade e a produção de fogo.

Quando em 1584 o borgonhês Balthasar Gérard, apoiante de Filipe II de Espanha, empunhando uma pistola com «fecho de roda» assassinou o príncipe Guilherme d’Orange com um tiro à queima roupa, no peito (5), nunca poderia imaginar que o sistema de disparo da sua arma haveria de ser usado em isqueiros.
Para a consecução do assassinato que tão bem preparou, Gérard comprou duas armas com «fecho de roda», sistema fiável e seguro desenhado por Leonardo da Vinci, cerca da viragem para o século XVI, mas que pode ter sido inventado por um mecânico alemão desconhecido (6).

O «fecho de roda» (7) é composto por:

•  uma roda serrilhada com mola, que está dentro de uma caixa de igual formato e que tem uma pequena abertura; e,

•  uma haste – “cão” – com garras e mola, que apertam um pedaço de pirite (por ventura alentejana).

Estas duas peças estão montadas numa placa metálica, à qual se liga o mecanismo do gatilho.

O “cão” tem duas posições:

•  em segurança – mantem a pirite afastada da roda; e,

•  pronta para ser disparada – coloca a pirite alinhada com a abertura da caixa da roda sob tensão da mola, ainda que afastada da roda por uma patilha.

Para a mola da roda funcionar tem de se dar corda com uma chave, como se de um relógio se tratasse.

Sequência de funcionamento

arma isqueiro
Premido o gatilho a patilha na abertura da caixa da roda afasta-se permitindo que a pirite entre em contacto com a roda, entrando esta em rotação sob acção da mola. A fricção da pirite gera faíscas incendiando a pólvora. Fazendo rodar a roda serrilhada com o polegar gera-se atrito com a pedra resultando faíscas que iniciam o combustível.
 fecho-roda_func isq_func

Lá está! chama-se pedra de isqueiro porque era usada uma pedra nos sistemas de disparo das armas para obter uma chama. Encontrado este nexo de causalidade entre os nomes iguais de coisas diferentes com a mesma função, verifica-se o mesmo para a denominação de isqueiro.

Etimologia

Isqueiro é uma palavra brasileira (8), com que os mazombos, filhos de pais europeus nascidos no Brasil, denominavam uma «caixa» contendo o artigo necesserário à produção de fogo.

O texto (9) do naturalista português Alexandre Rodrigues Fernandes, que ao serviço de D. Maria I, durante nove anos foi da Amazónia a Mato Grosso, é explícito:
«o que os Portugueses chamam Isca, para o fogo, da palavra latina esca mudando o (e) em (i), chamam os Índios Tatápotaba. …tatápotaba-rerú, vem a dizer o mesmo que Lugar, ou caixa do pasto do fogo. Tal é o nome que tem esta peça. Os Mazombos a chamam Isqueiro.
Há nele 2 coisas a considerar, o cilindro que serve de caixa à sobredita isca e a isca em si. Quanto à primeira é um gomo de cana…
Para servir de isqueiro fura-se o diafragma do fundo do gomo: pelo furo se empurra com um pau ponteagudo ou com outro instrumento a isca para cima, a proporção que o fogo consome a que fica imediatamente ao bocal. …

Quanto à isca de que está provido o isqueiro, é uma matéria tirada dos ninhos da formiga taracuhá: ela tem o trabalho de recolher esta substância que não é outra coisa mais, do que o cotão da página exterior da folha da árvore paranary. os índios têm o cuidado de o aproveitarem para a isca, depois de recolhido, e ajuntado pelas formigas. Usam dele em ambas as capitanias e para ferirem lume, não se afligem pela falta de fuzil. Esfregam entre si dois paus que sempre escolhem de madeira mole, como o cacau, o molongó, o curumi-ihua os talos dos cachos das palmeiras patauhá, ibacacabas, obossú, e o movimento excitado pelo atrito excita o fogo.

Da pele do pescoço da tartaruga yurarrá-reté, é feito o tampo do gomo: serve para preservar a isca da humidade e para lhe apagar o fogo privando-a do ar, que o entretem, enquanto é preciso.»

Os pastores algarvios usam ou usavam um isqueiro que tem afinidade com o isqueiro dos índios brasileiros, sendo composto por madeira, vidro e isca contidos numa carteira de couro (10).

Notas:
(1) https://www.museudosfosforos.vidasmundanas.net/files/u1/downloads/A%20industria%20fosforeira%20em%20Portugal.pdf
(2) COUNCIL REGULATION (EC) No 174/2000 of 24 January 2000 – https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32000R0174&from=EN
(3) Decreto-Lei nº 172/2007 de 8 de Maio
(4) A maioria dos isqueiros funcionam com combustível
(5) https://en.wikipedia.org/wiki/William_the_Silent
(6) https://en.wikipedia.org/wiki/Wheellock#Design
(7) Chant, Christopher, “How Weapons Work”, Marshall Cavendish Limited, 1980
(8) Figueiredo, Cândido, “Pequeno Diccionário da Língua Portuguesa”, S.E. Arthur Brandão & Cª, Lisboa, 1924
(9) documento original: https://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscritos/mss1456797/mss1456797.pdf
documento em português do Brasil: https://www.filologia.org.br/pereira/textos/memoria_sobre_o_isqueiro.htm
(10) https://www.proactivetur.pt/images/upload/ANEXO%20Digital%203%20-%20Cat%C3%A1logo%20da%20exposi%C3%A7%C3%A3o.pdf